Uma em cada quatro armas apreendidas pela PF é de uso restrito
Uma em cada quatro armas apreendidas pela Polícia Federal nos últimos dez anos era de uso restrito. Dados obtidos pelo R7 mostram que a corporação apreendeu 22.654 armas de janeiro de 2013 a março de 2022, mas a PF admite que os dados podem estar desatualizados.
Do total de armas apreendidas no período, 27% (6.185) eram de calibres restritos, ou seja, aqueles que por causa do maior potencial de dano são autorizados apenas para as forças de segurança e para CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas de fogo) –, entre eles, 1.660 fuzis, metralhadoras e rifles. As armas de menor potência, como as de calibres 380 mm, 32 e 38, representaram 39% (9.015) das apreensões. Parte do material não é classificado.
No Brasil, o registro de armas de fogo pode ser feito de duas formas: pelo Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da PF; e pelo Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), do Exército. Este último é exclusivo para registro de armas para militares e, no caso de civis, para os CACs.
Para conseguir o registro na PF é preciso ter no mínimo 25 anos, declarar a necessidade de possuir arma de fogo, comprovar que não tem antecedentes criminais e que não responde a inquérito policial ou a processo criminal, comprovar ocupação lícita, ter residência fixa e capacidade técnica e aptidão psicológica para manuseio de arma de fogo. Os aprovados em todas as etapas podem ter quatro armas de calibre permitido e 200 munições por ano.
Quem opta por ter o registro do Exército também passa pelas fases de checagem psicológica e de idoneidade, além de precisar ser filiado a um clube de tiro. Por causa disso, o processo demora até seis vezes mais. No entanto, após o aval do Exército é possível ter acesso a uma quantidade maior de armas, inclusive de uso restrito.
CACs podem ter até cinco peças de cada modelo de arma
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Atualmente, atiradores podem ter 60 armas, sendo 30 de uso restrito. Caçadores, até 30 armas, 15 delas de uso restrito. Para colecionadores não há limite de quantidade; é possível ter até 5 peças de cada modelo, além de 6 mil balas. Quem tem registro CAC pode ter, por exemplo, fuzis semiautomáticos calibres 5.56 e 7.62. O raio de letalidade desse tipo de fuzil é de até 2.500 metros e o alcance pode chegar a 5 quilômetros. Entre 2013 e 2022, 190 armas como essas estavam em poder do crime e foram apreendidas pela Polícia Federal.
Armas nacionais
A brasileira Taurus aparece na primeira colocação entre as fabricantes com mais armas apreendidas em poder do crime. Foram 5.317 nos últimos dez anos. Em seguida, aparece a Rossi, a Glock e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), com, respectivamente, 1,51 mil, 1,30 mil e 564 armas de fogo apreendidas. No total, são quase 400 fabricantes diferentes.
Ao R7, a Taurus justificou que os crimes envolvendo armas de fogo registradas são “raros e isolados”. “A Taurus possui um forte compromisso com o uso responsável de seus produtos, viabilizando com total segurança aos órgãos competentes a identificação personalizada das armas produzidas, observando-se o rigoroso cumprimento da legislação”, informou a empresa.
Contrabando
Outro dado que chama a atenção fala dos países de origem das armas. A polícia conseguiu identificar 61% dos fabricantes, e constatou que 37% dessas armas são pistolas ou revólveres de origem nacional. Em segundo lugar, aparecem os Estados Unidos como o país de origem de 11% das armas apreendidas. Depois estão a Argentina (2%) e a Áustria (1,6%).
Isso evidencia que o contrabando, principalmente com origem nos EUA, também é um importante meio de aquisição de armas pelo crime por causa da facilidade para a compra, destaca o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langueani.
“Os Estados Unidos são uma fonte de armas do crime para muitos países. Armas norte-americanas também estão presentes no perfil dos cartéis mexicanos e da América Central, isso porque qualquer pessoa pode comprar armas, o que faz com que seja muito atrativo para as quadrilhas buscarem armas lá”, destaca. “Aí são dois caminhos para essa arma chegar até o Brasil. Um deles é a exportação legal dos Estados Unidos para o Paraguai, do Paraguai vem traficada para o crime. Mas também existem casos de armas que são compradas legalmente e são desviadas aqui no Brasil”, explica.https://flo.uri.sh/visualisation/10280698/embed?auto=1A Flourish bar chart race
“A nova legislação deu uma série de privilégios aos CACs. Antes de 2019, essa categoria não podia ter fuzil, por exemplo, agora pode ter até 30. O incentivo para o crime organizado se infiltrar é muito grande. São brechas integralmente usadas por traficantes de armas”, ressalta.
Ao mesmo tempo em que cresce o número de armas de fogo em circulação no país – dados do Exército mostram que houve um aumento de 333% no número de novos registros em 2021 na comparação com 2018 –, também cresceu 35,9% o número de armas furtadas, roubadas, extraviadas ou perdidas em 2021, em relação a 2020.
Isabel Figueiredo, do Fórum de Segurança Pública, comenta que, além de evidenciar uma política de segurança pública frágil e ser sintoma de uma legislação de acesso a armas de fogo mais liberal, o dado também mostra o enfraquecimento do controle e rastreamento de armas no Brasil.
“Temos um discurso político de incentivo ao armamento e uma legislação menos rigorosa para concessão de porte e posse de arma de fogo, o que faz com que tenhamos um aumento no número de armas, junto a isso, temos ainda a polícia prestando menos atenção nesse ponto. É um conjunto de ingredientes ruins.”
Dados inconsistentes
O R7 questionou a Polícia Federal sobre o número de armas apreendidas no país, mas os dados dos anos 2020 e 2021 são inconsistentes. No dado obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), o número de armas apreendidas caiu quase 20% em um ano. Foi de 2.688 em 2020 para 2.166 em 2021. O contrário aponta o relatório feito pela área técnica da corporação, e divulgado pela assessoria de imprensa, que destaca que as apreensões aumentaram 40% no período. Passou de 1.465, em 2020, para 2.064, em 2021.
Sobre a diferença nos números, a PF informou que existem “problemas” com a “alimentação dos sistemas” e que esse tema tem sido discutido com a área técnica. Segundo a corporação, o número diverge porque é necessário “corrigir ou reclassificar” as informações retiradas dos painéis do sistema de polícia judiciária e da Polícia Federal “muitos dias depois” de o item ser apreendido.
Polícia Federal diz que dados sobre armas de fogo precisam ser revisados
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“Está sendo realizada uma revisão nos dados das apreensões relativas aos anos de 2017 a 2021, linha por linha, justamente para poder disponibilizar a informação mais exata possível, tanto para seus estudos e diagnósticos e para o rastreamento, quanto para disponibilização ao público via Lei de Acesso à Informação”, informou.
Segundo o professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança, Welliton Caixeta, a divergência nos números prejudica a reputação da Polícia Federal e compromete as eficiência das políticas públicas de segurança.
“Ainda precisa melhorar muito a transparência ativa. O excesso de burocracia para obtenção de dados e a classificação com chancela de reservado são fatores que dificultam a racionalidade da gestão de informações”, alertou.
O professor ainda destaca que pesquisas internacionais apontam que o aumento na circulação das armas, mesmo que adquiridas legalmente, impactam na escalada dos crimes violentos. “É equivocado associar porte de arma com a sensação ou percepção de mais segurança. O suposto ‘cidadão de bem’ armado e sem preparo técnico para manusear uma arma de fogo está duplamente em perigo, corre tanto o risco de usá-la inadequadamente quanto de tê-la extraviada e utilizada contra si e seus familiares”, afirma Caixeta, que também é pesquisador do Grupo Candango de Criminologia da UnB.
Para o especialista, o avanço dos crimes violentos desnuda a falta de planejamento e de política de segurança pública, que necessita de um projeto de maior integração entre as forças que atuam nessa área. “As instituições de segurança pública devem cumprir efetivamente seu papel constitucional e de forma integrada em prol da segurança dos cidadãos. A credibilidade e confiança da população quanto ao trabalho policial passa pela profissionalização das polícias”, conclui.
R7