Covid nos presídios: homens morrem 98% mais e mulheres se contaminam 22% mais
A Covid-19 assolou o já perverso sistema prisional brasileiro. Um estudo realizado pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com a Organização Mundial do Combate à Tortura revelou, porém, que a doença atingiu de diferentes formas homens e mulheres privados de liberdade.
Enquanto eles morrem 98% mais em presídios de todo o país, elas se contaminam 22% mais pelo coronavírus. Alguns dos fatores por trás desses números, de acordo com a socióloga e coordenadora da pesquisa, Ludmila Ribeiro, são a capacidade física das unidades femininas, que não favorece o distanciamento social necessário, e, no caso dos homens, o maior tempo de cumprimento de pena e a existência de comorbidades.
Segundo o levantamento, entre os doze estados que forneceram dados sobre a população prisional, nove informaram que não foram registradas mortes de mulheres nas unidades. “Algumas penitenciárias femininas tendem a ser mais superlotadas do que as masculinas”, afirma a pesquisadora. “Isso faz com que seja mais difícil adotar qualquer tipo de medida de isolamento e proteção contra a Covid-19.”
“As penitenciárias femininas têm mais serviços de atendimento médico em comparação às masculinas, seja pelos espaços destinados à maternidade, seja pela enorme tendência à medicalização nos presídios femininos”
LUDMILA RIBEIRO, SOCIÓLOGA E PESQUISADORA DA UFMG
Além disso, Ludmila ressalta que mulheres privadas de liberdade buscam mais atendimento médico dentro das unidades prisionais — o que, segundo ela, contribuiu para a menor letalidade pelo coronavírus. “As penitenciárias femininas têm mais serviços de atendimento médico em comparação às masculinas, seja pelos espaços destinados à maternidade, seja pela enorme tendência à medicalização nos presídios femininos.”
Nos espaços prisionais masculinos, autoridades sustentam que a pandemia foi controlada, principalmente, a partir da proibição das visitas. Contudo, conter a disseminação do vírus com uma política baseada na ruptura de vínculos com familiares, explica Ludmila, impõe uma série de outras precariedades à população privada de liberdade.
“A família é muito importante, essencialmente, às unidades masculinas. São os familiares que levam o jumbo [kit com produtos de higiene e alimentação], e com a proibição das visitas surgiram outros problemas de saúde relacionados à falta de itens necessários à saúde das pessoas presas”, explica. Nesse cenário, a população masculina, que tem uma média de idade superior à feminina, ficou com a saúde mais vulnerabilizada e mais sujeita à contaminação.
“A falta de materiais de higiene é regra nas unidades femininas”
Um relatório da Defensoria Pública de São Paulo, elaborado com base na inspeção de defensores em 27 unidades prisionais durante o período de pandemia, relevou que 81,48% das unidades estavam superlotadas — o que corresponde a 23 unidades. O documento destacou que duas unidades femininas não estavam superlotadas, porém em uma delas havia celas que abrigavam muito mais mulheres do que sua capacidade.
População prisional sofre com a falta de produtos de higiene adequados
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
De acordo com Juliana Gonçalves Miele, defensora pública de São Paulo, as condições de saúde das mulheres foram muito impactadas pela falta de itens de higiene. “A regra nos estabelecimentos é a falta desses materiais. Há uma queixa recorrente de que esses materiais são oferecidos em número insuficiente.” A defensora afirma ainda que no sistema prisional masculino as famílias complementam o que falta dentro dos presídios. “Nas prisões femininas, até por conta de um sistema patriarcal, as mulheres privadas de liberdade não recebem tantos materiais de fora”, explica Miele.
Outros fatores também ajudam a explicar a disseminação da Covid em unidades de privação de liberdade para mulheres. Nas unidades cujo sistema é o semiaberto, as mulheres, relata a defensora, costumavam sair para trabalhar durante o dia e retornavam à noite. Com isso, elas faziam uso dos produtos de higiene das empresas em que trabalhavam. “O que observei é que, com a pandemia, houve a suspensão do trabalho externo e, consequentemente, elas começaram a sentir mais falta desses itens, a pandemia evidenciou ainda mais isso”, diz.
Nas prisões femininas, até por conta de um sistema patriarcal, as mulheres privadas de liberdade não recebem tantos materiais de fora
JULIANA GONÇALVES MIELE, DEFENSORA PÚBLICA DE SÃO PAULO
Além disso, a defensora cita também a menor oferta de funcionárias para atender às demandas do sistema prisional feminino. “A falta de servidoras é evidente, conseguir um atendimento de saúde na pandemia é praticamente impossível”, diz. “Soma-se a isso que as mulheres presas são historicamente mais abandonadas. Todos esses fatores foram sentidos de uma forma bem mais evidente no feminino.” Os problemas de saúde mais recorrentes entre mulheres presas, que podem se agravar com a contaminação por Covid-19, são hipertensão, doenças cardíacas, respiratórias, hipertensão e doenças de pele.
Precariedade nos presídios de São Paulo
O relatório realizado pela Defensoria Pública de São Paulo é enfático ao dizer que no estado “o retrato é assustador”. Isso porque, segundo o defensor público Mateus Moro, o trabalho de fiscalização piorou durante a pandemia. “Divulgou-se a ideia de que seria melhor para as pessoas estarem presas porque os números de casos e óbitos por Covid seriam menores dentro do sistema prisional, mas, além de não haver testagem nas unidades, são locais extremamente insalubres”, diz ele.
Inspeção revela precariedade em cela de unidade masculina no litoral de São Paulo
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
De acordo com o relatório produzido pelo órgão, em 74% das unidades não há fornecimento de colchões para todos. São fornecidos “laminados de espuma, sem nenhum tipo de revestimento”, com pouca durabilidade e funcionando como “propagadores de doenças”. Em uma unidade no interior de São Paulo, homens privados de liberdade cumpriam “quarentena” isolados por 15 dias sem banho de sol em um local sem circulação de ar e sem banheiro. A defensoria concluiu que é “impossível manter o distanciamento necessário para evitar a contaminação por Covid-19”.
Em relação à estrutura física das construções, 74,1% dos estabelecimentos não tinham laudo da Defesa Civil, 57,7% das unidades não contavam com laudo do Corpo de Bombeiros e 92,59% não dispunham de laudo da Vigilância Sanitária. O relatório também revelou que as celas apresentam “total insalubridade, são mal iluminadas e com pouquíssima ventilação”.
O documento considera a cela de inclusão do Centro de Detenção Provisória de Americana, no interior do estado, “um calabouço”, com quase nenhuma iluminação. Em um Centro de Detenção Provisória do litoral paulista, as salas destinadas ao castigo dos presos, com capacidade para um detento, estavam com oito pessoas e outra sala, com cinco.
Falta de assistência de saúde
O relatório menciona ainda que grande parte das unidades inspecionadas apresentou uma infestação de insetos e outras “pragas”, principalmente percevejos, que se alimentam de sangue e se escondem em colchões. As condições sanitárias e de infraestrutura, segundo o documento, agravam as demandas de saúde nas unidades. As inspeções verificaram que nenhuma unidade fiscalizada possui equipe de saúde completa.
Divulgou-se a ideia de que seria melhor para as pessoas estarem presas porque os números de casos e óbitos por Covid seriam menores dentro do sistema prisional, mas, além de não haver testagem nas unidades, são locais extremamente insalubres
MATEUS MORO, DEFENSOR PÚBLICO DE SÃO PAULO
“Em meio a uma pandemia sem precedentes, 48,1% das unidades prisionais não têm nenhum médico para prestar atendimento”, disse o órgão. Em 62,69% dos presídios não há quantidade mínima de médicos, de acordo com o estabelecido pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional.
Mais da metade das unidades fiscalizadas não têm psicólogos nas equipes de saúde e em 37% dos presídios não há profissionais de serviço social. O relatório mostrou ainda que em grande parte dos presídios inspecionados as pessoas privadas de liberdade relatam sofrer com a oferta insuficiente de medicamentos. Em algumas unidades, o documento revelou que presas tiveram de dividir a “bombinha” usada para problemas respiratórios, aumentando o risco de contaminação por Covid.
Mulheres mostram máscara de proteção contra Covid rasgada em unidade de São Paulo
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
O relatório mostrou que, em setembro de 2021, 91,92% das unidades prisionais paulistas tinham sido oficialmente atingidas pela doença, registrando ao menos um caso de Covid-19 em pessoas presas. O documento adverte que o número de pessoas contaminadas nos presídios no decorrer da pandemia é desconhecido, uma vez que as testagens em massa foram realizadas de forma pontual durante o segundo semestre de 2020.
De acordo com o documento, medidas como racionamento de água foram constatadas em 70,4% das unidades prisionais inspecionadas. Mais do que isso: em 21,4% dos locais de aprisionamento, a oferta de água ocorria por um período inferior a uma hora diária. O banho de sol, por sua vez, nos setores de “castigo”, “seguro” e “inclusão” foi considerada uma prática comum. Por fim, o relatório demonstrou ainda que 62% das unidades consideraram a periodicidade do recebimento dos itens de higiene insuficiente, 16,7% disseram que nunca houve o fornecimento dos itens e 12% afirmaram que raramente os recebem.
Prevenir e combater a tortura não significa somente fiscalizar a aplicação de choques, mas também verificar a qualidade dos alimentos servidos
MATEUS MORO, DEFENSOR PÚBLICO DE SÃO PAULO
Em relação à distribuição de máscaras, a principal forma de proteção contra a Covid-19 depois da vacinação, o documento constatou que em 57,1% das unidades as pessoas presas não receberam reposição suficiente desses equipamentos. Em 33,3% das unidades, as máscaras foram entregues somente no momento de inclusão, segundo as pessoas privadas de liberdade.
Falhas nas fiscalizações
O defensor público Mateus Moro afirma que o relatório joga luz em aspectos centrais do sistema prisional brasileiro. “Prevenir e combater a tortura não significa somente fiscalizar a aplicação de choques, mas também verificar a qualidade dos alimentos servidos”, diz. Além disso, Moro ressalta que algumas inspeções foram realizadas durante a pandemia de forma virtual em diversos estados. “O diretor do presídio mostra o que ele quer nesses casos. É um sistema feito para matar. Na prática, é feita ‘vista grossa’, e o sistema acaba se blindando.”
Com a proibição das visitas como forma de combate à pandemia, as pessoas privadas de liberdade tiveram menos acesso aos kits de alimentação e higiene. Com isso, afirma Moro, muitos familiares se chocaram ao se reencontrar com parentes presos debilitados e desnutridos. “Além da falta de mantimentos, muitos ficaram sem roupas. Observamos pessoas que lavavam as vestes e as vestiam ainda úmidas porque não tinham o que mais usar.”
Cenário obscuro
O quadro devastador, como o diagnosticado pela defensoria em São Paulo e presente em outros estados, não necessariamente aparece nos números oficiais. “Fica evidente uma dissonância nos dados e uma disputa entre dados do Executivo e do Judiciário”, afirma Ribeiro. Para se ter ideia, entre os 26 estados e o Distrito Federal, somente 11 unidades da federação forneceram dados completos para a pesquisa realizada pela UFMG. No sistema socioeducativo, foram 13 os estados que passaram informações completas.
Inspeção mostra cela de presídio masculino sem iluminação
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
O estudo da UFMG também calculou o percentual de diferença entre os números informados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e os informados por meio da Lei de Acesso à Informação. Em alguns casos, como no Amazonas, a diferença entre o número de presos infectados por Covid chega a 73,30%, e no Distrito Federal, a 35,08%. Para os funcionários infectados pela doença, os percentuais também registraram variações bastante significativas.
No Rio de Janeiro, o número de funcionários infectados divulgado pelo CNJ é de 273 e os informados pela LAI, 805 — uma diferença de 194,87%. Já em Sergipe, esse percentual é de menos 58,27%.
Os estados não têm a menor noção do que acontece dentro das unidades prisionais
LUDMILA RIBEIRO, SOCIÓLOGA E PESQUISADORA DA UFMG
A diferença observada para as infecções é vista também nas mortes por Covid. Na Bahia, a variação é de 166%, uma vez que o número do CNJ é de três presos mortos e o da LAI é de oitos óbitos. Já em Mato Grosso do Sul, a discrepância é de 116,67%. Em relação ao número de funcionários mortos por Covid-19, os dados do Rio de Janeiro também chamam atenção. A diferença é de 350%, sendo quatro óbitos informados pelo CNJ e 18 pela LAI.
“Os estados não têm a menor noção do que acontece dentro das unidades”, diz Ribeiro. A pesquisadora destaca ainda que a população prisional é variável e por isso a taxa de testagem deveria ser superior à 100%. “Não são sempre os mesmos 720 mil privados de liberdade. Metade dessa população muda todos os anos. O que aumenta a necessidade de testes recorrentes.”
Outro lado
Em São Paulo, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) informou que até o fechamento desta reportagem morreram 81 presos por Covid-19 em presídios paulistas, o que representa uma taxa de letalidade de 0,51%. “Um número muito menor do que a população externa ao presídio, demonstrando a efetividade das medidas adotadas”, disse o órgão por meio de nota.
Em relação à saúde das pessoas presas, a SAP informou que distribuiu máscaras e equipamentos de proteção individual, “além de ampliar a distribuição de produtos de higiene, tanto para a limpeza das celas quanto para o uso pessoal”. A pasta informou que os presos têm atendimento de saúde garantido em todas as unidades prisionais do Estado, “tanto pela equipe médica existente na própria unidade quanto pela rede pública de saúde local”. Sobre o jumbo, o órgão disse que os kits passam por um procedimento sanitário que impõe a necessidade de esperar o período de três dias para garantir que não ocorra contaminação pelo vírus.
No que se refere à superlotação, a secretaria disse que “desde o início desta gestão foram inaugurados oito novos presídios, ampliando 6,6 mil vagas no sistema prisional, além de cinco novas unidades prisionais em construção para criar outras 4,1 mil novas vagas”. A pasta observou ainda que, nos últimos dois anos, houve uma redução de 13% da população carcerária no sistema paulista.
Laminados de espuma são fornecidos no lugar de colchões em unidades prisionais de SP
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO
A SAP disse ainda que “não há nenhuma obrigatoriedade de laudos da Defesa Civil para unidades prisionais”. Já em relação ao Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB), o órgão informou que “é um documento com necessidade de ser revalidado a cada cinco anos, sendo que as unidades providenciam as informações e regulamentações necessárias para consegui-lo”. No que diz respeito ao laudo da Vigilância Sanitária, “os projetos padrões masculinos mais recentes dispõem dessa anuência, cabe a cada direção de unidade, se entender necessária, requerer a aprovação da Vigilância Sanitária no âmbito municipal”.
Em relação ao fornecimento de alimentos às pessoas privadas de liberdade, a pasta informou que “em todas as unidades são servidas pelo menos três refeições (café, almoço e jantar) diariamente”. O órgão negou que houvesse racionamento de água nas unidades. “Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água. A Secretaria reforça o uso consciente para evitar que haja desperdício.”
Por fim, sobre as condições de insalubridade verificadas nas inspeções, a secretaria disse que “preza pela garantia das condições de habitabilidade e salubridade. O tratamento dispensado aos custodiados no sistema penitenciário paulista é pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana”.
R7