Subnotificação de crimes contra LGBTQI+ preocupa direitos humanos
O aumento de mais 20% em crimes violentos contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (LGBQTI+) em 2020, divulgado na semana passada no Anuário Brasileiro da Segurança Pública, é apenas uma fração da violência contra essa população, alertam ativistas dos direitos humanos e defensores dos direitos das minorias, que apontam a alta de subnotificação dos casos e problemas na disponibilidade dos dados. Apesar da equiparação da LGBTQIfobia ao crime de racismo por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, os avanços institucionais para mapear a incidência desse crime ainda são considerados lentos.
Segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve, em 2020, um crescimento de 20,9% nas lesões corporais dolosas, de 20,5% nos estupros e de 24,7% nos homicídios dolosos de LGBTQI+. Os pesquisadores responsáveis pelo levantamento ponderam que “a baixa qualidade dos registros não permite afirmar com precisão se o aumento é de fato um aumento do número de casos ou um aumento na capacidade e nos esforços de identificação e notificação”.
A falta de dados disponíveis para mapear a violência contra LGBTQI+ foi um problema encontrado pelos pesquisadores em todas as regiões do Brasil. Para os homicídios dolosos, por exemplo, a pesquisa não conseguiu obter informações do Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima e São Paulo.
“Se os crimes de injúria racial e racismo possuem dificuldades no registro, os de homicídio, cuja vítima não tem mais a possibilidade de tecer ativamente uma narrativa sobre si e o que ocorreu, possuem registros ainda mais escassos”, diz o anuário.
A necessidade de melhorar a disponibilidade de dados foi destacada recentemente em uma pesquisa divulgada pelo Grupo Arco-Íris, que fez uma série de recomendações a órgãos públicos fluminenses e alertou que “não há hoje como saber quantos registros de ocorrência são feitos em cada delegacia do estado do Rio de Janeiro sobre violência em razão de orientação sexual e identidade de gênero de forma clara, objetiva, direta e transparente”.
Um dos esforços da sociedade civil para suprir essa necessidade é o relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que foi divulgado em janeiro e indicou um aumento de 29% nos assassinatos de transexuais no Brasil em 2020 .
A presidente da associação, Keila Simpson, acredita que o trabalho de contabilizar os crimes tem repercutido e estimulado maior esforço por parte dos estados em melhorar os dados disponíveis. Mesmo assim, ela percebe o aumento nas ocorrências em 2020 como um agravamento da violência contra a população trans, mesmo em meio à pandemia da covid-19 e ao isolamento social.
“Temos notado que o recrudescimento da violência ocorre nos momentos em que os discursos de ódio estão mais inflamados, e a gente não tem uma perspectiva boa de que isso vá diminuir no curto prazo”, lamenta.
Tanto a presidente da Antra quanto o Anuário de Segurança Pública destacam o nível de crueldade desses crimes. A pesquisa mostra que há uma “disposição aniquiladora” nesses criminosos, e cita o caso de Roberta da Silva, mulher transexual que foi queimada por um adolescente em Recife em 24 de junho deste ano e morreu em 9 de julho. Keila Simpson resgata também o caso de Dandara, no Ceará, que foi apedrejada e espancada antes de ser morta a tiros, crime gravado pelos próprios autores em vídeo.
“Existe uma expressão de ódio nesses crimes. A pessoa que mata uma pessoa trans não dá só um tiro em uma parte vital. Dá cinco, oito, dez”, denuncia a presidente da Antra. “A gente chama a atenção que não é só o assassinato em si, mas é o requinte de crueldade que faz a gente ficar mais assustada e alerta com essa violência”.
Advogado que atuou nas ações que levaram o STF a criminalizar a LGBTQIfobia, Paulo Iotti considera que falta capacitação e sensibilização para que os sistemas de justiça e segurança pública registrem e conduzam devidamente as ocorrências desses crimes. Presidente do Grupo de Advogados por Diversidade Sexual e de Gênero, ele disse que a decisão do STF foi um marco, mas que as mudanças que vieram desde então estão em ritmo muito lento.
“A passos de tartaruga, a passos bem lentos, a gente tem avançado. Mas a gente precisa avançar muito mais”, ressalta.
Iotti disse que as vítimas têm ido mais às delegacias para registrar os crimes, mas que precisam ser mais bem recebidas, o que ele acredita que poderia ser enfrentado com políticas públicas direcionadas a orientar os profissionais de segurança pública e sensibilizar a sociedade de modo geral.
“Há um problema sério de subnotificação, e isso é para todos os crimes contra minorias”, disse o advogado, que explica que vítimas de crimes de ódio podem ser desencorajadas a registrar ocorrências e até ser vítimas de novas discriminações quando se deparam com policiais despreparados para lidar com a diversidade.
Um estudo lançado este ano pela organização não governamental All Out, em parceria com o Instituto Matizes, corroborou as considerações dos ativistas ao apontar 34 barreiras que dificultam a efetiva criminalização da LGBTQIfobia no Brasil.
Entre os obstáculos, estão a falta de disposição política para promover os direitos LGBTI+; desigualdade no ingresso de mulheres e LGBTQI+ nos sistemas de justiça e segurança pública; relativização do discurso de ódio; não preenchimento de dados sobre orientação sexual e identidade de gênero nos boletins de ocorrência e número insuficiente de delegacias especializadas.
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